Nosso ponto de partida ao falar sobre street dances, é de que estamos falando de danças estadunidenses oriundas das culturas negras e indígenas; então o olhar para essa relevância será racializado. O começo da manifestação popular miscigenada dos Estados Unidos, foi o jazz, que antes de ser o que é, foi também canto, ritmo, religião e poesia. É através de mãos e vozes negras que surgem os spirituals e o ragtime.
Aqui, vamos direto para o Congo Square, uma praça em New Orleans, considerada a cidade berço do jazz, onde pessoas negras se encontravam para reuniões, feiras e celebrações de danças e ritmos africanos, um dos pilares no desenvolvimento do jazz.
Essa contextualização é porque foi a partir desses corpos que surgiram as bases para o que hoje entendemos como street dances. Sua manifestação cultural foi sendo passada de maneira vernacular através das gerações, ou seja, tudo o que se faz hoje em relação às street dances, é uma herança sócio-cultural e ancestral do jazz e do que veio um pouco antes disso.
O conjunto de circunstâncias da época, fez com que o negro escravizado utilizasse a dança ancestral para abraçar o banzo. Esse pode ser um dos reflexos para a busca de identidade.
Essas pessoas sempre precisaram se moldar e se adaptar a uma estrutura, que além de não ter sido feita as considerando gente, tinha um sistema que animalizava mais ainda a sua imagem e se esforçava veemente para apagar qualquer traço étinico de identificação.
Estamos falando aqui, de um entendimento de moda eurocentrado e ocidental, num conceito que surge na Idade Média, quando começa a segregar as pessoas de acordo com o tecido e a cor da roupa, aplicando num sistema de classe quem era nobre e quem não era.
Apesar de hoje em dia as coisas não serem tão extremistas assim, ainda há um julgamento de valor sobre alguém a depender da roupa que estiver usando; e isso não era diferente no século XIX, no Estados Unidos, quando pessoas negras estavam sendo alforriadas da escravidão.
Para terem o mínimo de dignidade social, essas pessoas precisaram se adapatar ao mundo em que viviam e isso incluía as roupas que nada tinham haver com a sua história e ancestralidade. No cake walk, por exemplo, manifestação social através da dança e música, como ferramenta de interação entre brancos e negros, parte desse encontro tinha como base a necessidade de vestir suas melhores roupas, pelo conceito da branquitude sobre isso; que nada mais era do que um reforço racista do que acontecia nos shows de menestrel, onde havia a prática de blackface que se estendia para uso de roupas extravagantes e coloridas, ridicularizando a fisionomia e identidade negra.
Anos mais tarde, na era do jazz, o vestir ainda era importante. Artistas da dança que no audio visual só apareciam representando empregos subalternos, fora desse universo, exploravam a expressão e a própria identidade através das roupas que usavam. Nesse período do Jazz, isso se refletia também na música, com os hepcats, e se fosse uma pessoa branca interessada no jazz, um hipster.
Enquanto tudo isso acontecia no universo do jazz, a mãe das street dances, a I e II Guerras Mundiais, também afetaram a indústria da moda e a forma como a mulher branca se apresentava socialemente, que servia de padrão.
Em meados da década de 1960 é fundado o partido dos Panteras Negras para Auto-defesa, em respostas à supremacia branca e a KKK. Parte do seu discurso era sobre o empoderamento negro também através da sua imagem, estimulando que os jovens afro-estadunidenses tivessem orgulho de sua fisionomia, seus cabelos e suas roupas.
Poucos anos depois, em 1970, estreia o “Soul Train” um programa televisivo de entretenimento que todo sábado pela manhã transmitia performances musicais de artistas negros com o auditório mais irreverente da época: dezenas de jovens, também negros, que dançavam quase o tempo inteiro. Tudo isso, durante a era black power e o movimento pelos direitos civis, protagonizados por pessoas negras.
Diversos dançarinos que participaram do “Soul Train” se tornaram pioneiros ou referências para as street dances que foram sugindo nas décadas de 1970 e 1980. Participar do programa, era também fazer parte desse viés político da estética. O que os dançarinos vestiam era ao mesmo tempo um reflexo das tendências de moda da época e um catalisador para elas.
Nos anos 70, havia espaço para várias coisas dentro da moda. O interessante era o simples fato de que todos se vestiam para se sentirem fabulosos. Além de que, pelo alcance da televisão, todos queriam se sentir vistos (e faziam de tudo para garantir isso).
O fato de muitas vezes as pessoas dançarem em pares no programa, principalmente no Soul Train Line, estimulava o uso de roupas iguais, que não era exatamente sobre roupas andrógenas, mas que conversavam com a ideia de roupas de gênero neutro, fazendo com que a roupa fosse apenas roupa, sem distinção de ser feminina ou masculina.
“Soul Train” conseguiu o feito de imortalizar uma era do estilo e da cultura negra. Ficou no ar por 35 anos, e obviamente as pessoas começaram a imitar em seu dia-a-dia o que viam na televisão: desde o soul train line, a dar mais valor, importância e autoestima no que usar para ir em uma festa ou celebração.
Quando a gente tem o entendimento de que as street dances que vieram depois estão ligadas à cultura do que era feito na rua, das festas que eram produzidas e tinham um apelo visual e uma influência da moda de cada época, fica mais fácil observar e reconhecer que a referência mais direta do soul train e mais indireta da era do jazz, sobre valorizar e destacar de maneira empoderada a própria imagem e estética se estabeleceu nessas sub-culturas,
Para finalizar e exempificar, a cultura dos bailes no Brasil, como o Chic Show e o movimento Black Rio, sentiram aqui os efeitos dos Panteras Negras e começaram a perceber a relevância da autoimagem ter personalidade. E temos também o anúncio, recém feito, do tema do MET Gala 2025 que será “Black Dandyism”, do qual recomendo fortemente a pesquisa.